Embora o investimento no ensino superior seja visto quase sempre como positivo, o direcionamento desse investimento gera controvérsias. Há quem diga, por exemplo, que a pesquisa de base não deve receber mais investimentos do que a pesquisa aplicada. E há também quem considere que o investimento em humanas seja supérfluo ou até desnecessário.
No entanto, o investimento em humanas é um aspecto importante da sociedade. Além de contribuir para áreas que podem ajudar na superação de desafios globais (como desigualdade social e crise climática), as humanas também podem ser uma opção surpreendentemente boa de carreira.
Não dá emprego?
O argumento comum de que “cursos de humana não dão emprego” não é tão verdadeiro quanto se diz. É o que indica, ao menos, uma matéria recente da BBC. Segundo o texto, um estudo feito com 1.700 pessoas de 30 países descobriu que a maioria dos que ocupavam cargos de liderança vinha de graduações em ciências humanas ou sociais, especialmente entre as com menos de 45 anos.
Especialista ouvidos pela rede jornalística argumentaram que as habilidades mais buscadas em profissionais de alto nível eram relacionadas às áreas de humanidades. Ela cita uma pesquisa do LinkedIn segundo a qual as habilidades sociais mais procuradas por empregados em 2019 são: criatividade, poder de persuasão e capacidade de colaboração. Além disso, “gestão de pessoas” também era uma das habilidades concretas mais procuradas na rede.
Uma pesquisa da empresa Glassdoor lançada no começo deste ano também sugere que as humanas são boas para quem procura emprego. O levantamento da empresa descobriu que oito dos dez melhores empregos do país (segundo salário, satisfação e oportunidades) exigiam habilidades relacionadas a cursos de humanas.
Investimento em humanas para a sociedade
Ainda que as humanas possam ser benéficas para quem as cursa, há quem argumente que elas não contribuem para a sociedade. Caroline Daley, a Pró-Reitora de Pós-GRaduação da Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, refuta essa ideia — embora ela admita que pode “ser acusada de enviesamento” nessa questão, já que “meu background acadêmico é em humanas” e ela é também historiadora.
“Nós que trabalhamos com ciências sociais e humanidades podemos ajudar todos a entender nosso lugar no mundo, como chegamos até onde estamos, por que as pessoas se comportam da maneira como se comportam, e como podemos mudar essas coisas para melhor”, defende.
Daley é particularmente gabaritada para falar sobre esse tema. Afinal, a Universidade de Auckland foi recentemente destacada como a melhor do mundo em um ranking da Times Higher Education. O ranking, chamado de University Impact Rankings, avaliou as instituições segundo suas contribuições para os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU.
E, na visão de Daley, o investimento em humanas humanas têm um papel importante nesse reconhecimento — e para esses objetivos. “Não podemos enterrar nossas cabeças na areia e pensar que resolver demandas financeiras de curto prazo resolverá também desafios globais de longo prazo”, argumenta.
O caso do Japão
O Japão tem um caso recente de cortes no investimento em humanas. Em 2015, o ministro da educação do Japão, Hakubun Shimomura, enviou cartas às 86 universidades japonesas solicitando o fechamento, ou ao menos a reformulação, de seus cursos de ciências humanas e sociais. O objetivo, de acordo com o Times Higher Education, era “abolir [organizações de ciências humanas e sociais] ou convertê-las de maneira a que elas sirvam melhor às necessidades da sociedade”.
A medida gerou reações das comunidades universitárias. O Conselho de Ciências do Japão emitiu um comunicado informando que “Ciências Humanas e Sociais fazem uma contribuição essencial para o conhecimento acadêmico”. Um presidente de uma da universidades japonesas considerou “anti-intelectual” a atitude do ministro. E a comunidade acadêmica europeia também repudiou os cortes no investimento em humanas no país, segundo o Guardian. As universidades de Tóquio e de Kyoto (as melhores do país, segundo o ranking da QS) se recusaram a acatar o pedido.
Em 2018, no entanto, o governo japonês voltou atrás. Num comunicado de abril daquele ano, o ministério da educação se comprometeu a retomar o investimento nas humanas, com foco em contribuir para os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU. Essas metas, o texto diz, só podem ser atingidas mediante a colaboração entre diversas áreas do saber — daí a necessidade de se investir em humanidades e ciências sociais.
E no Brasil?
Por aqui, a questão dos investimentos em ciências humanas voltou à pauta em abril deste ano, quando o Ministério da Educação, chefiado por Abraham Weintraub, anunciou que pensavam em “descentralizar o investimento em faculdades de filosofia e sociologia”. Na ocasião, o ministro citou a medida japonesa de 2015 (mas não sua retratação em 2018).
A proposta gerou diversas críticas, incluindo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, para quem essa medida não geraria renda ou emprego. O Brasil, afinal, tem uma tradição forte em ciências humanas. O pedagogo Paulo Freire, por exemplo, é autor do terceiro trabalho mais citado no mundo na área de humanas: o livro Pedagogia do Oprimido, de 1968.
Por conta da proposta de cortes do investimento em humanas no Brasil, as universidades francesas também enviaram, em 6 de maio, uma mensagem de apoio às universidades brasileiras. Ingrid Chanefo, adida de cooperação universitária da Embaixada da França no Brasil e Diretora do Campus France Brasil, diz que as universidades receberam “com preocupação” as declarações, “até mesmo devido ao impacto potencial que tais medidas têm sobre a cooperação rica e antiga que a França e o Brasil possuem no campo das ciências humanas e sociais”.
“Temos orgulho de ter contribuído, nos anos 1930, através das ações de Claude Levi Strauss e Fernand Braudel, citando apenas os pesquisadores mais conhecidos, para a criação dos departamentos de ciências humanas e sociais da USP”, cita Ingrid.