Quando Carlos chegou na China, percebeu algo curioso: “Pareço uma criança que precisa aprender a falar e a ler tudo de novo”. Por mais assustador que isso fosse, também revelou a ele que havia um mundo novo a ser descoberto alí, o que ele achou bem empolgante.
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Carlos Henrique Pires, assistente de jornalismo da CCTV, só estudava mandarim há dois meses quando foi para a China pela primeira vez, em 2010, após vencer um concurso do Instituto Confúcio (onde estudava). As duas semanas que passou lá foram suficientemente impactantes para lhe dar vontade de voltar. E então, de agosto de 2011 a junho de 2012, passou mais um ano estudando em Wuhan, cidade no centro do país.
Assim como Carlos, outros intercambistas viram em destinos incomuns uma oportunidade de ter contato com culturas muito diferentes e aprender a “se virar”. É o caso também da advogada Monyse Almeida, aluna do MBA Atlântico, graças ao qual ela ficou em Luanda, capital da Angola, de maio a agosto de 2017. “O motivo foi justamente sair da zona de conforto, das mesmas referências”, diz.
A experiência lhes ajudou a desenvolver uma enorme capacidade de adaptação, entendimento de modos de pensar diferentes e respeito a outras culturas. E, a seguir, eles oferecem algumas dicas para quem pretende se aventurar em destinos inusitados.
Uma língua estranha
Você pode não se lembrar da dupla russa t.A.T.u. que fez sucesso no começo dos anos 2000 com a música “All The Things She Said”. Mas foi por meio dela que Gabriel Caio de Souza (atualmente residente em farmácia de oncologia no Hospital São Paulo) teve seu primeiro contato com a língua russa e ficou com vontade de aprender mais.
“Eu ia ficar um ano só, mas no fim eu vi que era pouco para poder aprender. E para eu poder continuar lá, eu precisava fazer algum curso lá. Então eu resolvi estudar Farmácia, que era um curso que eu já ia fazer aqui”, relembra. No total, Gabriel ficou de 2009 até 2015 na cidade de Belgorod, a cerca de 600 quilômetros de Moscou.diz.
“Já tinha cerca de 50 brasileiros morando lá quando eu cheguei, e eu tive ajuda deles. Sem eles teria sido bem difícil, porque era no interior da Rússia e ninguém falava inglês”, conta.
Carlos, na China, também contou com ajuda em seus primeiros dias. Na escola onde estudava, havia uma professora que ensinava português para chineses, e ela escolhia alguns de seus alunos para serem “anjos”: os responsáveis por ajudar os estrangeiros a darem seus primeiros passos no país.
“O meu nome, ‘Carlos’, se eu errava o tom virava ‘parafuso’ em mandarim”
Por ser uma língua tonal, o chinês causa algumas confusões para quem não está acostumado. “O meu nome, ‘Carlos’, se eu errava o tom virava ‘parafuso’ em mandarim”, conta Carlos. “Todo brasileiro que vai pra China demora uns 3 ou 4 meses pra dar aquela destravada. Porque a gente não tem contato com a língua no Brasil, então não tem referência nenhuma de vocabulário”, afirma.
O que ajuda nesses casos é aprender algumas frases básicas. Rômulo Siqueira, que estudou engenharia mecânica na Universidade de Kaist em Daejeon, na Coreia do Sul, entre 2015 e 2016, fez isso. “Quando vi que fui aprovado, comecei a estudar coreano. Usei um app pra pelo menos conhecer o alfabeto, então eu já cheguei lá sabendo ler, mesmo sem entender. E aprendi algumas frases simples, como para dizer oi, pedir água, etc”.
Durante o ano em que ficou lá, ele fez aulas de coreano junto com as matérias da faculdade, e considera que hoje fala o básico. “Em coreano você precisa saber como mudar sua fala dependendo de com quem você tá falando. Se você vai dizer ‘oi’ para um amigo, ou para uma criança, é de um jeito; para pessoas mais velhas é de outro jeito, e se for para o seu chefe é ainda de outro jeito”, diz.
Tito Ferraz Ribeiro, que em 2006 fez o 3º ano do ensino médio na Dinamarca por um programa do Rotary, não teve essa “sorte”. “A gente foi meio que jogado lá. Não era esperado que você rendesse academicamente, mas sim que você fosse às aulas”, conta. Hoje em dia, ele diz que fala e entende dinamarquês relativamente bem. “Mas já tenho aí umas 10 mil horas de experiência em ouvir dinamarquês sem entender nada”.
Alimentação diferente
Para Carlos, na China, a questão da língua se misturou com a alimentação em um ponto crítico. “A comida na China é muito apimentada. Então a primeira coisa que os professores ensinam é ‘não quero pimenta’. Mas às vezes a gente esquecia como falava isso e não conseguia comer”, conta.
Mesmo sem pimenta, Carlos estranhava a comida. “No café da manhã, por exemplo, eles comem macarrão, pasteizinhos, sopa de ovo. Demorou um pouco, mas eu acabei me acostumando”, comenta. Havia a questão dos horários também: na universidade onde ele ficou, o jantar só era servido até as 18h30, porque na China janta-se mais cedo.
Quando batia a saudade da comida de casa, o que Carlos podia fazer era recorrer a redes de fast food. “O McDonalds lá existe, mas também é apimentado. Fora isso, tinha também Pizza Hut e KFC, mas também era difícil achar um lanche sem pimenta” conta. Mesmo assim, ele diz que se acostumou com a comida e que hoje gosta.
Gabriel, no interior da Rússia, não tinha essa possibilidade. “Nossa felicidade era quando alguém ia para Moscou e trazia um lanche do McDonalds durante a viagem de 12 horas de trem”. Embora ele tenha gostado da comida russa quando chegou lá, a adaptação no longo prazo foi difícil.
“Quase chorei no avião pro Brasil quando comi um mamão, porque lá quase não tem quase fruta fresca”
“A princípio era tudo muito gostoso. Mas a comida de lá é muito pesada. Acabei engordando uns 15 quilos”, diz. Depois, a novidade passou “e eu só sentia saudades da comida daqui. Quase chorei no avião pro Brasil quando comi um mamão, porque lá quase não tem quase fruta fresca”, lembra.
Na Coreia do Sul, Rômulo também sofreu um pouco com a pimenta. “Lá é tudo muito apimentado. E você come Kimchi [acelga ou couve fermentada com temperos] no café da manhã, no almoço, de tarde, toda hora. No começo eu não gostava, sentia dor de estômago. Porque por lá, largar comida no prato é mal visto. Mas hoje em dia eu gosto”, ressalta.
Por outro lado, comer comidas diferentes também pode ser uma ótima maneira de se aproximar de outra cultura. É um pouco isso que Tito descreve quando fala do natal que passou na Dinamarca: “Lá eles fazem vários almoços de natal, cada dia de dezembro com um grupo diferente de pessoas. E no dia, você come a comida especial de natal, bebe a bebida de natal, canta a música de natal e dança ao redor da árvore”.
Cadê o sol?
Tito, que saiu da Bahia e foi para a Dinamarca, conta que na sua primeira noite na Dinamarca estava nevando, então ele e seus amigos saíram para ver a neve. “Eu peguei uma bola de neve para brincar e fiquei com os dedos inchados do frio”, conta. Mesmo assim, ele gostou bastante de experimentar o clima diferente. “A Dinamarca, apesar do que pensam, tem um frio moderado. No inverno que eu peguei lá, a média foi de -4ºC”, conta.
Em Wuhan, na China, Carlos enfrentou uma situação mais complicada. No calor, faz mais calor que em São Paulo, pelo que ele se lembra. E, no inverno, ele chegou a pegar dois dias de neve. Mas diferentemente da Dinamarca, as casas por lá não tinham calefação ou aquecimento central. “No frio ninguém queria sair do quarto, só ligar o aquecedor e ficar lá. Todo mundo que era do Brasil sofria”, lembra.
“No verão, 22h30 ainda tava claro e 4h30 já amanhecia”
Mesmo Gabriel, que ficou no inverno russo, não sofreu tanto com o frio graças ao aquecimento dos edifícios. Ma ele passou outra dificuldade: “nunca fui muito fã de sol, mas lá eu sentia falta porque no inverno amanhecia umas 9h e às 16h já escurecia. Isso deixa você mais deprimido”, diz. “E no verão, 22h30 ainda tava claro e 4h30 já amanhecia, então isso era chato também”, complementa.
Para Monyse em Luanda, o calor não chegou a ser um problema. No entanto, o calor trazia mosquitos, e na ocasião em que ela foi, os viajantes eram orientados a passar repelente. “Todo o dia a gente passava. E tinha que repassar ao longo do dia”, conta.
Acostumando com outros costumes
No começo de sua estadia na Coreia do Sul, Rômulo foi comprar algo e, ao pagar, percebeu que a dona da loja olhou feio para ele. Só foi descobrir depois o motivo. “Eu dei o dinheiro com uma mão só. E lá, tudo que é dado com uma mão só é como se fosse dado com raiva ou desprezo”, diz. Para quem vive lá, é algo tão natural que parece que nem vale a pena comentar; mas para quem é de fora, cometer uma gafe é praticamente a única maneira de descobrir.
Na China, uma amiga de Carlos passou por uma situação semelhante. Ao agradecer um colega chinês que a tinha ajudado, ela lhe deu um abraço forte. “Ele ficou muito vermelho e começou a chorar. E quanto a gente perguntou o que era, ele disse que estava guardando aquilo para a primeira namorada dele”, conta. “Eles não gostam muito de contato físico”, complementa.
Às vezes, essas diferenças não aparecem na linguagem, mas na maneira como ela é usada, como Gabriel aponta. “O brasileiro tem dificuldade de ouvir não. Se a pessoa é direta demais, a gente fica ofendido. E lá [na Rússia], eles são bem diretos”.
Um ponto que Tito estranhou na Dinamarca foi que, enquanto estava falando com as pessoas, elas faziam um barulho estranho: algo entre um suspiro e um soluço. Depois, percebeu que aquele era o sinal que eles faziam para indicar que estavam acompanhando a conversa — do mesmo jeito que a gente faz “hm”.
E, é claro, existe a questão da pontualidade. De acordo com Carlos, “Na China, você atrasar 5 minutos é uma grande falta de respeito”. Como no Brasil os horários podem ser um pouco “flexíveis”, isso pode ser um ponto contencioso para quem chega a um lugar diferente.
Pelos olhos dos outros
Apesar dessas dificuldades todas, vivenciar essas culturas permite ampliar seus horizontes e, às vezes, até olhar com novos olhos para o Brasil. Na viagem para a Coreia do Sul, Rômulo passou por um processo desse tipo quando teve que fazer uma apresentação sobre o Brasil como parte de seu estágio de férias na Hyundai.
“Lá, eles adoram o Brasil. Eles têm uma visão de nós como um povo que sabe trabalhar muito, mas também sabe aproveitar muito bem a vida. E depois disso, eu passei por cima da ‘síndrome de vira-lata’ e comecei a valorizar mais as coisas que a gente faz aqui”, conta.
“Depois disso, eu passei por cima da ‘síndrome de vira-lata’ e comecei a valorizar mais as coisas que a gente faz aqui”
Monyse, enquanto estava em Luanda, acabou ficando no entorno da universidade. Mas ela pode frequentar a academia da universidade (que eles chamavam de “ginásio”) onde descobriu que havia aulas de Kuduro. Na visão dela, foi uma oportunidade de “entender, com essa linguagem do corpo, como eles se comunicam”, além de conhecer angolanos que ela não conheceria na universidade.
Nesse contato, ela também teve acesso a uma visão diferente sobre o Brasil. “Na visão deles, a gente é meio como os irmãos mais velhos, então tem uma questão aspiracional e inspiracional. E o Brasil está muito presente nas questões intangíveis e culturais”, diz. Por exemplo, ela se deparou com angolanos que conheciam blogueiras e youtubers brasileiras que nem ela conhecia.
Para Gabriel, os anos na Rússia trouxeram também a oportunidade de desenvolver características desejáveis para qualquer pessoa, tanto na vida profissional quanto na vida pessoal. “Eu morava num prédio com 15 nacionalidades diferentes, então tive contato com muita gente e aprendi a respeitar os costumes dos outros estudantes”.
E depois de alguns anos na Rússia, conta, “eu acabei sendo veterano. Então quando chegavam outros alunos brasileiros, eu ia mostrar a cidade, resolver os problemas deles, e assim fui adquirindo responsabilidade”, diz.
Carlos, enquanto estava na China, foi convidado por uma amiga chinesa a passar o Ano Novo Chinês com a família dela. “É uma coisa muito grande, significa que a pessoa é muito importante para você”. E teve então a oportunidade de ver como era um lar chinês, como eles celebram a data com muitos fogos, e participar da ceia. “Foi a melhor experiência que eu tive na China”, diz.
7 dicas para facilitar a adaptação em locais diferentes
1 – Vá com a cabeça aberta
“Não adianta você ir para outro lugar se você não estiver preparado para aceitar coisas que pra você seriam inaceitáveis”, comenta Gabriel. E isso pode ser mais difícil do que parece. Carlos dá um exemplo de sua experiência na China: “os chineses arrotam na rua, e antes eu julgava bastante”, conta.
“Mas”, continua, “segundo o confucionismo, que é parte da cultura deles, tudo que é ruim tem que sair. Então para eles isso é bom e natural”. Segundo Carlos, essa capacidade que ele desenvolveu de entender e respeitar mesmo comportamentos muito diferentes foi seu maior aprendizado na experiência.
2 – Procure novos confortos
Na experiência de Rômulo, uma coisa que ajuda na adaptação em locais diferentes é buscar, nessa nova cultura, por coisas que substituam aquilo a que você era acostumado na sua cultura. “Eu adoro feijoada, mas lá [na Coreia do Sul] não tinha feijoada. Mas aí eu descobri que eu adoro lámen também”, conta.
Essa descoberta, no entanto, só foi possível porque ele se propôs a “não ficar sofrendo com o que não tinha”. “A galera que menos se adaptou foi a galera que continuou fazendo lá o que fazia no Brasil”, lembra. Ele considera, portanto, que não ficar preso às coisas de que você já gosta é melhor.
3 – Fale mal, mas fale a língua local
Carlos recomenda que quem vá para a China ao menos tente falar chinês, mesmo que não fale quase nada e mesmo que precise trocar para inglês logo na sequência. “Mesmo que você só saiba falar ‘oi’, eles vão falar que o seu chinês é ótimo. E você tá aprendendo também”, considera.
Mas ele também cita outro motivo para isso, que faz com que essa seja uma dica interessante para qualquer destino ao qual você viaje. “Isso vai mostrar que você está tentando falar a língua local, e não tá lá num padrão de turista dos EUA que acha que todo mundo tem que falar inglês”, diz. Dessa forma, tentar falar a língua local (mesmo que muito mal) pode acabar sendo uma maneira de demonstrar respeito.
4 – Busque ajuda de quem já tem experiência
Monyse e Gabriel recomendam fortemente que, antes de partir para um destino diferente, o viajante converse com quem já esteve por lá. “A gente sempre imagina o que nos espera por lá, mas só quem já foi pra lá sabe isso com certeza”, diz Gabriel.
No caso de Monyse, antes de partir para Luanda ela conversou com outros alunos que já tinham ido para lá no mesmo programa de intercâmbio. “Eles contavam coisas que nem a escola mesmo poderia contar, por não ter vivenciado aquele choque cultural”, lembra.
5 – Prepare-se como der
Uma coisa que Carlos recomenda a quem vai para um local com alimentação muito diferente da sua é levar remédios que possam ajudar. Se você já sabe que esse ou aquele comprimido pode salvar sua vida se você passar mal, vale a pena levar alguns deles (mas não muitos, afinal o transporte de medicamentos entre países é controlado).
E mesmo que você precise pular algumas etapas no seu curso de línguas, vale a pena aprender frases básicas para pedir um táxi, chamar um médico ou algo do tipo.
6 – Pesquisa a literatura do seu destino
Monyse oferece uma dica interessante: ler a literatura do país para onde você está indo. “Eu me propus a ler o Ondjaki, o Pepetela e o Agualusa [romancistas angolanos] antes de ir para lá para já ir com algum repertório. Achei melhor do que conhecer o país pela frieza e parcialidade da História, que geralmente é escrita pelos portugueses”, conta.
Essa pesquisa literária, na visão dela, fez muita diferença. “Eu prestei mais atenção na arquitetura e nos detalhes descritos nos romances, e eu acho que eu mergulhei mais no país assim”, conta.
7 – Valorize o seu destino
Tito considera que não há motivo para “ter medo” de um destino diferente, como Dinamarca, China, Rússia ou Coreia do Sul. “É fácil ter no CV uma experiência de curso curto em uma universidade legalzinha nos EUA ou na Europa, mas pouca gente tem experiência em mandarim ou em algo que ainda tá pra ser descoberto”, opina.
Por isso, na experiência dele, a oportunidade de visitar esses destinos é algo que deve ser valorizada. “Pensa que para ir pros Estados Unidos ou pra ir para Paris você provavelmente vai ter outra chance na vida”, considera.