Carreira acadêmica é o nome dado, muitas vezes, à escolha de seguir estudando até bem depois da graduação. Ou seja: fazer mestrado, doutorado, pós-douturado, etc. Mas a carreira acadêmica é muito mais do que só isso: envolve encarar de frente tudo que a humanidade ainda não entende e se dedicar para ampliar, ainda que um pouco, a nossa fronteira do conhecimento.
Normalmente associamos a carreira acadêmica a uma vida na universidade: a pessoa que segue estudando além do mestrado, no nosso imaginário, continua trabalhando na universidade até o fim da carreira. Mas nem sempre é esse o caso, especialmente nos Estados Unidos e Europa, onde já há esforços mais concentrados para aproximar a academia do mercado de trabalho.
Da academia ao mercado
Isabel Viegas de Lima, por exemplo, após fazer a graduação em egenharia civil em Universidade da Califórnia em Berkeley e um mestrado em Transporte no MIT, atualmente trabalha em uma consultoria de transportes chamada Steer. Para ela, aprofundar os estudos e, depois, seguir para um emprego de consultoria foi um rumo natural, traçado pelo que ela chama de “interesse em perguntas técnicas difíceis”.
“Enquanto cursava minha graduação em engenharia civil em Berkeley, estagiei em um centro de pesquisa de mobilidade urbana. Lá entendi que dentro do mundo de transporte podemos simplificar as soluções criadas em dois eixos: a sofisticação técnica e a aplicabilidade. Eu reconheci que queria fazer parte de projetos que eram técnicos e aplicáveis ao mesmo tempo, e com isso em mente decidi aplicar ao MIT, que tende a trabalhar com projetos de grande impacto”, conta.
Sua experiência de pesquisa, tanto na graduação quanto no mestrado, foi essencial na preparação para o seu trabalho atual. “Meu mestrado, onde foquei em desenvolver modelos avançados para modelagem de comportamentos ligados a mobilidade, me preparou muito teoricamente para os projetos dos quais faço parte”, conta.
Carreira acadêmica e pesquisa
Mas par aplicar o conhecimento, é necessário que ele seja produzido primeiro. E a produção de conhecimento foi o que atraiu Bárbara Cruvinel Santiago desde cedo, quando ela participava de olimpíadas científicas. Uma delas, em particular, lhe chamou a atenção: o Torneio Internacional de Jovens Físicos (IYPT).
Esse torneio, como conta Bárbara, “não envolvia provas, mas sim que você resolvesse problemas de física completamente abertos de maneira teórica e experimental, o que parece mais com a vida de um pesquisador na vida real”. “Eu passava noites acordada resolvendo esses problemas e planejando meus experimentos”, lembra. E conclui dizendo que “desde então sabia que queria seguir carreira acadêmica e produzir conhecimento em vez de só aplicá-lo”.
Para isso, ela fez a graduação em física em Yale. Passou as férias de verão do seu primeiro ano no CERN, a Organização Europeia para Pesquisa Nuclear. “Mas a pesquisa nessa área envolve programar o dia inteiro”, diz. Por isso, buscou uma área de pesquisa onde pudesse colocar a “mão na massa”. Passou seus dois últimos anos da graduação trabalhando em um laboratório de física atômica em Yale. E logo após se formar, ficou um ano trbalhando no LIGO, o Observatório de Ondas Gravitacionais por Interferômetro Laser, laboratório de ondas gravitacionais do MIT que em 2017 ganharia o prêmio Nobel da Física.
“Meu trabalho por lá ainda envolvia muito do que eu fazia em Yale, trabalhando com lasers, equipamentos eletrônicos e programação, porém o objetivo final seria usar o que a gente desenvolvesse com aplicação em astrofísica, o que acabou chamando um pouco mais da minha atenção. Foi quando eu decidi trabalhar na parte de instrumentação em astrofísica e vim fazer meu PhD em Columbia”, conta.
O que faz um pesquisador?
Atualmente, Bárbara trabalha com pesquisa em astrofísica, “mais especificamente em instrumentação astronômica”. “Basicamente meu trabalho é tentar desenvolver instrumentos que possam ser mais eficientes para estudar a interação entre galáxias com o universo ao redor delas”, explica.
Há uma motivação bem interessante por trás dessa pesquisa: entender do que é feito o nosso universo. “Só 5% do universo é composto por matéria bariônica, que é basicamente os elementos que formam eu, você, o ar que a gente respira, os móveis ao nosso redor, etc; o resto é o que a gente chama de matéria escura, que é algo que não entendemos. Mas estima-se que só 10% desses 5% (ou seja, menos de 1% do universo) estejam nos discos de galáxias. O resto deve estar em filamentos pelo universo”, diz Bárbara.
Por isso, o laboratório em que ela trabalha “desenvolve instrumentos, chamados espectrógrafos, para que possamos entender a interação entre galáxias próximas a nós e o resto do universo que as cercam. Para que a gente possa, um dia, entender onde está o resto da matéria comum no universo”.
Se a carreira acadêmica de Bárbara vai para um lado mais abstrato, a pesquisa de Isabel, por outro, levou-a a um trabalho mais concreto. “O escritório de Boston [da Steer], cidade onde moro, é especializado em modelagem comportamento ligado ao transporte. Fazemos previsão de demanda para vários tipos de sistema de transporte diferentes”, conta.
Com o conhecimento obtido no seu mestrado, ela ajuda na metodologia de projetos inovadores na área. “Por exemplo, estamos ajudando o departamento de transporte da cidade de Nova Iorque entender o valor intrínseco de reformas de praças publicas para pedestres, que não é capturado hoje com os ganhos atribuídos à saúde e segurança. O objetivo é gerar um valor monetário que possa ser usado em análises de custo-beneficio, que tradicionalmente não capturam esse aspecto do bem estar social”, diz.
Dores e delícias da carreira acadêmica
“A experiência mais recompensadora é trabalhar com um pesquisador ou cliente que empurra a compreensão teórica ao máximo”, diz Isabel sobre seu trabalho. Ao longo do mestrado, ela conta que desenvolveu uma base teorica que, hoje, permite que ela aplique os modelos que conhece “de formas novas para resolver problemas de mobilidade de nossas cidades”.
Para Bárbara, a parte mais legal da sua carreira acadêmica é que ela envolve “aprender coisas novas todos os dias”. “E, agora que estou no PhD, também tenho a oportunidade de ajudar a treinar a próxima geração de cientistas interagindo com alunos mais novos”, complementa.
Por outro lado, um dos maiores desafios do trabalho, segundo ela, é manter a motivação. “Eu chego todo dia no laboratório sabendo que algo vai dar errado, meu trabalho envolve conseguir lidar com frustrações todos os dias, afinal de contas estamos tentando produzir e descobrir coisas que outras pessoas ainda não conhecem ou não sabem. Trabalho acadêmico é demorado e os resultados demoram a aparecer” comenta. Na experiência de Isabel, a natureza do trabalho científico também pode gerar frustrações. Ela conta que seu professor de mestrado, “conhecido por ser durão na hora de dar feedback, destruía trabalhos de meses em algumas frases”.
Infelizmente, as duas também enfrentaram um desafio adicional na sua trajetória: o preconceito. “Se manter motivada na ciência já é difícil por si só, mas se manter motivada quando você é constantemente subestimada por conta do seu gênero é uma barreira a mais”, comenta Bárbara.
Isabel complementa dizendo que, da sua graduação ao seu emprego atual, “o machismo sempre foi paupável: aulas onde tínhamos que nos provar antes de receber o respeito de professores, grupos de pesquisa onde homens falavam que mulheres eram piores em matemática, reuniões que ninguém escutava nossas ideias (até ela ser repetida por um homem)”.
Para ambas, o que ajudou na superação desse obstáculo foi cercar-se de outras mulheres e pessoas que entendiam sua situação. Isabel, por exemplo, conta que as mulheres do seu escritório (onde 80% dos cargos sênior são ocupados por homens) se organizaram e reclamaram formalmente após “meses de exclusões sistemáticas de reuniões importantes com clientes e oportunidades de crescimento”. O resultado foi positivo: gerou um novo programa de desenvolvimento de carreiras e coaching interno dentro da empresa.
Carreira acadêmica no Brasil
Recentemente, ser brasileira também se tornou um obstáculo adicional para a carreira de ambas também. Os recentes cortes das bolsas de órgãos de financiamento de pesquisa do governo federal, como o CNPq e a CAPES, tornaram praticamente inviável para que pesquisadores se mantenham no país.
Isabel acredita que esse corte “terá repercussões muito mais vastas do que percebemos hoje”. “Se desinvestimos na educação e na pesquisa hoje, vamos sentir os impactos por muitas décadas. Perdermos pesquisadores que queriam ficar no Brasil e não daremos oportunidades para muitos que gostariam de seguir carreira académica ou se especializar”, argumenta.
Bárbara concorda e ressalta que as bolsas cortadas não são um benefício, mas sim o salário dos pesquisdores brasileiros. “Um pesquisador no Brasil, como um aluno de mestrado ou doutorado, já é muito barato e mal ganha o suficiente para conseguir pagar um aluguel, mas são esses alunos que fazem a pesquisa girar em qualquer lugar”, comenta. Como pesquisadora em Columbia, ela tem um salário, plano de saúde e aluguel subsidiado pela universidade — com isso, consegue se manter na pesquisa “apesar do custo de vida alto de Nova York”. “Sem esse tipo de investimento, é difícil imaginar qualquer cientista querer continuar uma carreira acadêmica no Brasil ou imaginar que alguém queira voltar”, diz.
A alternativa apresentada pelo governo, de trazer investidores privados para ajudar a financiar a ciência, é pouco eficaz na visão de Bárbara. “pesquisa pura não dá resultado imediato e iniciativas privadas se mantém de lucro e não têm como esperar décadas para que algum resultado bastante significativo seja apresentado”, argumenta. E quando ela diz “décadas”, é com precisão: o CERN, onde ela trabalhou, levou décadas para descobrir o Bóson de Higgs, “no meio tempo desenvolvendo a internet como usamos hoje”.
Conselhos para quem quer seguir carreira acadêmica
Isabel concorda que essa situação prejudica a ciência brasileira ao dificultar que pesquisadores se mantenham por aqui. “Sem recursos, fica muito difícil manter a qualidade da pesquisa”. Bárbara, por sua vez, diz acreditar que sua melhor aposta seja continuar minha carreira por aqui e, quando eu tiver meu próprio laboratório, começar colaborações com cientistas no Brasil, para que eles também tenham acesso ao que eu tenho onde eu estou”.
Mas para quem pretende seguir uma carreira acadêmica, o conselho de Bárbara é conectar-se com pessoas que possam ajudar. “Ter mentores que acreditam em você e com quem você se identifica é fundamental”, considera.
“De resto, é importante ter a cabeça aberta, pois áreas de pesquisa novas estão sempre surgindo, saber quando tirar um tempo para repor as energias e achar algo que lhe mantenha motivado para continuar trabalhando no mesmo problema por alguns (ou vários) anos”, acrescenta.
Isabel, ao considerar um doutorado, diz acreditar que “seguir carreira acadêmica é aceitar muitos sacrifícios”, como ter poucoas chances de morar na cidade de que gosta ou que a área tem egos que às vezes falam mais alto que a qualidade dos resultados. Mesmo assim, ela considera que a pessoa que pretende seguir nessa área “tem que ser criativa e estar disposta a mudar o seu campo de atuação pelo lado de dentro”.