Pesquisa de base: por que é importante investir em projetos sem retorno imediato
Imagine um projeto de pesquisa de base que tenha o seguinte objetivo: determinar a sequência de grupos de moléculas localizados nos núcleos de células humanas. Pode parecer que se trata de um projeto de interesse restrito, e sem muita aplicabilidade. No entanto, em 1988, a comunidade científica internacional se uniu exatamente para fazer isso. Os Estados Unidos, por exemplo, investiram US$ 3 bilhões nesse projeto.
Esse projeto de pesquisa de base é conhecido hoje como o Projeto Genoma Humano. E de acordo com a MIT Technology Review, ele não teve apenas o efeito de produzir conhecimento sobre as peças fundamentais que determinam quem somos. Em 2012, 14 anos após o começo do projeto, o mercado de sequenciamento de genoma humano empregava mais de 280 mil pessoas, gerando US$ 19 bilhões em renda pessoal, além de US$ 3,9 bilhões em impostos federais e US$ 2,1 bilhões em impostos estaduais e locais — apenas nos Estados Unidos.
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Ou seja: os US$ 3 milhões investidos em pesquisa de base viraram US$ 25 milhões. A situação mostra que a pesquisa de base não só permite produzir ciência relevante, que abre muitas possibilidades de aplicação, como também pode ser um investimento extremamente rentável.
Pesquisa de “céu azul”
Em inglês, a pesquisa de base é às vezes chamada de “blue sky research”. O nome reflete a ideia de que ela é movida por curiosidade e não vinculada, necessariamente, a aplicações imediatas e interesses comerciais. E segundo Caroline Daley, Pró-reitora de Pós-Graduação da Universidade de Auckland, esse tipo de pesquisa é essencial para qualquer universidade.
Daley é particularmente qualificada para falar sobre o tema. Afinal, a Universidade de Auckland foi considerada a melhor do mundo de acordo com o ranking de impacto da Times Higher Education (THE). O ranking avalia as universidades de acordo com suas contribuições para os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU. Ou seja: ela é pró-reitora da instituição de ensino superior que, segundo o THE, mais contribui para o desenvolvimento sustentável.
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“A beleza da ‘blue sky research’ é que você nem sempre sabe o que vai descobrir, ou o que essas descobertas trarão, seja em termos de políticas públicas, seja em termos de oportunidades comerciais”, considera. Ela considera que as universidades precisam ter corpos de financiamento que compartilhem dessa visão de longo prazo. “Tudo bem ter fundos para fins comerciais e imediatos, mas nenhuma universidade é capaz de operar se essa for sua única fonte de financiamento para pesquisas”, diz.
Para ela, garantir a existência desses recursos é vital para a sociedade como um todo. “Quando olhamos para pesquisas em áreas como matemática pura ou filosofia, vemos que muitos anos depois, há consequências muito reais para a sociedade que são frutos dessas pesquisas — sejam econômicos ou sociais — e que não eram imaginados na época em que a pesquisa foi feita. É assim que progredimos. Devemos defender isso”, argumenta.
Pesquisa de base contra o câncer
O caso da empresa britânica KuDOS ilustra bem a importância que a pesquisa de base pode ter — e as dificuldades que ela pode enfrentar para encontrar financiamento. A empresa foi fundada pelo cientista molecular Steve Jackson, que descobriu quase por acasa uma proteína chamada KU. Essa proteína ocorre naturalmente nas células humanas e ajuda a reparar danos que acontecem quando as células estão duplicando seu DNA.
Esses danos são causados não só por fatores externos, como produtos tóxicos ou luz violeta com a qual entramos em contato, mas também pelo nosso próprio metabolismo. E células danificadas podem desencadear uma série de doenças, incluindo muitas formas de câncer. Por isso, é importante para a nossa saúde que os mecanismos de reparo do DNA (como a proteína KU) funcionem bem.
Mas entender o funcionamento dessa proteína abre outras possibilidades. Isso porque algumas células cancerígenas só conseguem reparar seu DNA usando esse método. Células saudáveis, por sua vez, conseguem consertar seus danos de outras maneiras, mesmo que a proteína KU não esteja disponível. Inibir proteínas de reparo celular, nesse caso, permitiria criar medicamentos oncológicos mais eficazes.
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Jackson, no entanto, encontrou dificuldades na hora de buscar financiamento para sua ideia em empresas farmacêuticas e grupos de capital de risco. Como ele explica nesta palestra, a resposta mais comum que ele encontrava era: “Por que alguém desejaria impedir o reparo de danos de DNA?”. Foram necessários dois anos de esforços longe dos laboratórios, apenas melhorando seu pitch, para que ele conseguisse encontrar financiamento para a sua ideia.
A KuDOS, em 2005, foi comprada por 120 milhões de libras pela gigante farmacêutica AstraZeneca. Desde então, desenvolveu drogas que já trataram mais de 20 mil pacientes com câncer.
Investimento em pesquisa de base
A percepção de que a pesquisa de base pode trazer vantagens importantes para a economia motiva alguns países a investir boa parte de seu PIB nessa área. Na França, segundo Ingrid Chanefo, 2,2% do PIB é investido em pesquisa e inovação, “com uma tendência de alta (+8% do orçamento nos próximos anos)”. Além disso, 1,4% do PIB do país vai para o ensino superior, e esse valor corresponde a 92% do financiamento das universidades francesas. “A França faz da economia do conhecimento um de seus pilares”, comenta Ingrid.
Nos Estados Unidos, a porcentagem do PIB que vai para pesquisa é de cerca de 2,84%, segundo o USA News. Alemanha e China têm porcentagens semelhantes, em torno de 2%; já o Japão investe 3,5% do seu PIB, e a Coreia do Sul, 4,3%.
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Mas o valor, nos Estados Unidos, já foi muito maior. O governo federal já chegou a reservar 10% de seu orçamento para essa área, em 1968, de acordo com o MIT Technology Review. A queda nesse valor motivou a universidade a publicar, em 2015, um relatório sobre as possibilidades que esse investimento traria — e os riscos que existiam em cortá-lo.
Marc Kastner, professor de física do MIT, foi um dos responsáveis pelo documento. “Economistas nos dizem que investimentos em pesquisa e desenvolvimento feitos no passado respondem, hoje, por por boa parte do nosso PIB, e mesmo que os resultados futuros não sejam tão expressivos, não há dúvida de que sofreremos se não acompanharmos os países que, atualmente, fazem investimentos maiores do que nós”, opinou na época.
Na área de ciências humanas, a falta de investimendos pode ter consequências ainda mais graves. É o que considera a Pró-Reitora de Pós-Graduação da Universidade de Auckland. “Há um cliché de que quem não entende o passado está fadado a repetí-lo — e há algo de verdadeiro nessa ideia. Se queremos viver num mundo melhor, devemos prestar atenção às pessoas que entendem o passado e o presente”, avalia.
E no Brasil?
O Brasil tem exemplos de nível internacional de aplicação de pesquisa de base. O mais recente é o da epidemiologista Celina Zurchi, que em 2015 foi chamada pelo Ministério da Saúde para investigar um aumento no nascimento de bebês com microcefalia em Pernambuco.
Formando uma rede global de pesquisadores, ela conseguiu de monstrar que o aumento estava ligado à infecção de gestantes com o vírus Zika durante o primeiro trimestre da gravidez — e, com isso, foi capaz de orientar políticas públicas para combater a epidemia. Sua atuação fez com que a publicação científica Nature a considerasse uma das 10 principais pesquisadoras do ano em 2016.
Mas na comparação com os países citados acima, a situação do país é um pouco pior. De acordo com dados da Unesco e do Banco Mundial levantados pelo Nexo, cerca de 1,3% do PIB brasileiro foi investido em pesquisa e desenvolvimento no ano de 2015. Analisando com relação à população, o país investiu menos de 300 dólares por pessoa nessa área — cifra semelhante à da Turquia. Reino Unido e Canadá investiram cerca de US$ 700 por pessoa; EUA e Israel, mais de US$ 1.500.
O valor, no entanto, vem em tendência de queda. De acordo com o Globo, desde 2016, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq, principal órgão de incentivo à pesquisa no Brasil) vem tendo orçamento menor ano a ano. Em 2016, foram destinados R$ 1 bilhão em bolsas para pesquisadores; em 2019, esse valor caiu para R$ 784 milhões — queda de mais de 22%, ou quase um quarto.
Essa queda fez com que o órgão suspendesse mais de 4,5 mil bolsas. Foi a primeira vez em mais de 30 anos que isso aconteceu. Em defesa da ciência brasileira, sete ex-presidentes do conselho elaboraram um documento denunciando o risco que o órgão corre. Segundo a Folha, o CNPq só tem, atualmente, orçamento para pagar suas bolsas até setembro.