O conflito entre a Ucrânia e a Rússia chegou ao 16º dia nesta sexta-feira (11) e ainda é difícil entender “o potencial de crescimento” da violência que ocorre na região, explica Raphael Lima, Líder Estudar, pesquisador de Estudos de Guerra e doutorando no King’s College London, do Reino Unido. “O problema de conflitos é esse, você pode gerar uma escalada sem fim”.
As muitas incertezas em torno dos objetivos do presidente russo Vladimir Putin ao iniciar a invasão faz com que seja “um pouco difícil precisar nesse momento” o que pode acontecer nas próximas semanas e meses. Entretanto, segundo Raphael, é importante lembrar que “na guerra ou em qualquer tipo de uso de força militar é necessário sempre ter em vista a política”.
Formado em Relações Internacionais na UNESP e Líder Estudar 2019, o pesquisador se interessou pelo tema desde a graduação. “Sempre gostei de questões de conflitos internacionais, geopolítica, guerra e uso da força militar”, conta. No King’s College London ele integra o Departamento de Estudos de Guerra, da Escola de Estudos de Segurança, e o grupo King’s College Brazil.
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Em 2015, Raphael entrou para a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e depois trabalhou com planejamento estratégico no IPEA. O objetivo ao entrar no King’s College London é “tentar conectar o conhecimento acadêmico com as demandas de planejamento estratégico do exército brasileiro”. “Prestei doutorado aqui porque aqui é o grande centro de estudos dessa área”.
A política por trás do conflito
Além dos governos da Rússia e da Ucrânia, há um terceiro personagem presente em debates e análises do conflito, a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte). Criada em 1949, durante o período da Guerra Fria, a organização é uma aliança militar intergovernamental formada por países ocidentais do norte global, como Estados Unidos e potências européias, e criada para disputar territórios e influência política com a então URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas).
Hoje, 40 anos após o fim da URSS, a Rússia disputa essas áreas de influência com a OTAN, embora Putin seja crítico e opositor ao antigo regime soviético. “A preocupação sempre é manter a União Europeia e o Ocidente fora da zona de influência”, explica Raphael. Essa zona são os antigos países que integravam a URSS, entre eles a Ucrânia, e que ainda hoje possuem comunidades pró-Rússia.
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Putin assumiu a presidência em 1999 e desde então iniciou uma política com objetivo de tentar “fazer a Rússia voltar a ser uma grande potência”. Desde então, houve um gradual aumento de tensões na disputa de influência regional entre a OTAN e a Rússia nos países da antiga URSS.
Raphael explica que a disputa nessas regiões acontecem de várias formas, entre elas através do financiamento de grupos pró-Rússia, pela Rússia, ou pró-Estados Unidos, pelos Estados Unidos. “Os EUA e a Rússia fazem isso tanto na Ucrânia quanto no leste europeu”, conta.
Um conflito antigo
O pesquisador conta que as disputas entre Rússia e OTAN são antigas, e as discussões sobre a Ucrânia e os países do leste europeu em relação à Rússia acontecem desde o fim da URSS. A disputa se intensificou no início dos anos 2000, com a “adesão de vários países não só à OTAN como à União Europeia”.
Desde então, uma série de conflitos aconteceram na região. Entre eles, a Guerra Russo-Georhttps://www.estudarfora.org.br/wp-content/uploads/2014/02/20140203_upenn_620-x-270-1.jpg, que ocorreu em 2008. Na ocasião, a Rússia e a Geórgia entraram em guerra pela disputa da região da Ossétia do Sul, ocupada majoritariamente por populações russas e que, antes da guerra, era parte da Geórgia. Após o conflito, os separatistas conseguiram independência e hoje se autodeclaram República da Ossétia do Sul — Estado da Alânia.
Em relação à Ucrânia, o conflito existe desde 2004, quando aconteceu a chamada Revolução Laranja – uma série de protestos que criticavam a legitimidade do candidato à presidência Viktor Yanukovych, que era mais próximo ao governo russo. Na ocasião, seu opositor Viktor Yushchenko, ganhou a maioria dos votos e se tornou presidente. “A Ucrânia sempre teve grupos pró-rússia e pró-ocidente, essa disputa sempre aconteceu”, explica Raphael.
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Nas eleições de 2010, o candidato pró-rússia Viktor Yanukovych venceu a disputa e se tornou presidente do país. Em 2014, Yanukovych foi destituído do cargo após ser acusado de corrupção e perseguido por opositores, forçando o ex-presidente a pedir asilo na Rússia. A forma como a destituição se desenrolou fez com que muitos apontassem o ocorrido como um golpe de Estado.
Desde então, as tensões entre regiões pró-Rússia e pró-ocidente se acentuaram. “A Ucrânia não deixou de estar em guerra desde 2014. Entretanto, o pesquisador conta que a adoção de uma operação militar “de tão larga escala” por Putin no início desde ano “surpreendeu”. “A diferença deste conflito para outros é esse engajamento direto da Rússia que a gente não via desde 2008”, na Guerra Russo-Georhttps://www.estudarfora.org.br/wp-content/uploads/2014/02/20140203_upenn_620-x-270-1.jpg.
Os efeitos colaterais de uma guerra
“A guerra também é um fenômeno social”, explica Raphael. Uma das possíveis consequências da permanência desse conflito é tornar a divisão entre grupos pró-rússia ou pró-ocidente algo “incrustado na sociedade”. O risco é transformar essas tensões em parte da “dinâmica social” da região. “Se perde muito facilmente o controle”, conta.
Na área de Estudos de Guerra, há diversos estudos em abordam o processo de radicalização de um conflito. “A partir do momento em que você está muito engajado em uma guerra por muito tempo, perde-se o horizonte e acaba naturalizando a violência”.
“Esses conflitos, quando muito recorrentes, se tornam parte de determinada sociedade”, explica. Uma situação de violência como esta pode gerar efeitos sociais “muito substantivos”, atingindo a economia e até a geopolítica. “Se temos uma ordem internacional em que permite cada vez mais incursões e invasões de países soberanos, que tipo de ordem estamos construindo?”.
Afinal, o que é uma guerra?
“É a continuação da política por outros meios”, explica Raphael, ao citar autores de teoria dos conflitos. “Guerra, coerção ou uso de capacidades militares faz parte da política, ela é a política por outros meios”.
Há diversas ferramentas para tentar interferir ou influenciar outras outras regiões ou nações além da opção militar. A mais comum é a econômica, feita via sanções, que limitam ou até inviabilizam trocas comerciais com a região que pretende ser afetada.
Um exemplo de sanção econômica são os embargos alimentares adotados pelos países ocidentais contra a Rússia e a retirada do país da Copa do Mundo de Futebol, que acontecerá no fim de 2022. Uma das sanções mais famosas do mundo é a imposição do embargo comercial, econômico e financeiro contra Cuba pelos Estados Unidos, que completa 50 anos, sendo o mais longo da história.
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Uma segunda ferramenta é a diplomática, que tenta resolver tensões através do diálogo e de acordos, geralmente encabeçada pela ONU (Organização das Nações Unidas). “Quando nenhum dos outros mecanismos são suficientes, a guerra é um outro meio de se fazer a política”.
O problema que surge é que, “se um conflito escala de tal forma que perde os objetivos políticos, ele se torna um conflito que não tem possibilidade de vitória”. Para Raphael, no caso da Ucrânia, “tudo depende de até onde Putin e o Governo Russo estão dispostos a ir em relação e quais serão os impactos das sanções contra a economia russa”.
Sobre a Escola de Estudos de Segurança do King’s College London
A Escola de Estudos de Segurança é um dos maiores centros de estudo sobre conflitos do mundo que conta com dois departamentos: o de Estudos de Guerra e o Departamento de Estudos de Defesa – que auxilia na formação dos militares da academia de defesa do Reino Unido. A universidade é classificada como uma das melhores do mundo e referência na área de humanidades, ocupando a 30ª posição no Ranking QS por área de conhecimento.